05/08/2012

sobre o direito de escolha

Por todo esse tempo sempre tive pudores de falar sobre parto natural e domiciliar por aqui. Tenho um certo trauma, sabe? De ter feito uma escolha que pra mim foi tão difícil, mas tão libertadora, de ter sido um parto tão bonito e tranquilo, de ter conseguido fazer uma coisa que há oito anos tinha fracassado, e de isso tudo que era tão bom ter sido engolido no dia seguinte por uma cardiopatia surpresa, assustadora e maldita.

Mas eu não posso mais fingir que não é comigo, mesmo que esse dia tenha sido enterrado e esquecido durante muito tempo. Meu parto foi fruto de uma escolha difícil, e de muito estudo e preparação. Felizmente eu tive o direito de fazer essa escolha. E agora estamos num momento politicamente crucial pra quem quer escolher a mesma coisa, ou alguma coisa parecida, ou escolher qualquer coisa que seja, e eu preciso contar como foi comigo e porque eu ainda acho que foi a melhor coisa que eu podia ter feito, mesmo que tenha sido tão condenada depois que descobrimos a cardiopatia.

Antes de um relato cronológico, eu vou explicar mais didaticamente a nossa ignorância da cardiopatia. Eu fui em muitos médicos quando tava grávida. Muitos mesmo, porque eu demorei até entender como funcionava a logística mercadológica de botar um filho no mundo e saber que você tem que escolher os profissionais que sejam defensores, quase militantes do tipo de parto que você quer ter pra poder conseguir parir assim. Enfim, tem um momento na gravidez em que você tem que fazer um ultrassom morfológico, que mede mais coisas e mostra melhor o desenvolvimento da pessoa dentro de você do que os outros ultrassons normais. Nesse ultrassom o médico da clínica que fazia ultrassons me disse que não tava conseguindo ver o coração do Matias direito, e que, por formalidade, ele ia colocar no laudo que indicava um ecocardiograma fetal, mas que ele achava que era só a posição da pessoa na minha barriga que tava atrapalhando a visualização. Foi justamente na época em que eu tava decidindo qual tipo de parto eu queria ter e, por isso, tava indo em um monte de médicos ao mesmo tempo. Nenhum deles disse que eu fosse mesmo fazer o eco depois que eu mostrei o exame. Nenhum. E eu, que não gosto de exageros de exames e ultrassons, decidi não fazer. E eu assumo essa decisão, jamais sairia apontando o dedo pra qualquer profissional que me atendeu. Sei que não fiz, e que depois nada mais apareceu em outros ultrassons normais e que, sendo teoricamente uma gravidez de baixo risco, optei pelo parto domiciliar.

Volta pra 2001. Fiquei grávida da Júlia e não tinha médico. Ia numa gineca hype de vez em quando, mas tinha que marcar consulta com 4 meses de antecedência e peguei banzo. Então quem acompanhou a minha gravidez foi o médico da minha mãe, que tinha me tirado da barriga dela 22 anos antes. E eu tinha 22 anos e tinha uma vontade muito vaga de ter um parto normal e uma impressão mais vaga ainda de que tinha alguma coisa errada nesse mundo pra todas as mulheres que eu conhecia fazerem cesáreas. Eu lembro de perguntar pra minha avó sobre os nascimentos dos filhos dela e de não entender como eu tinha mãe e tios, porque todos eles tinham tido "complicações" que hoje em dia implicariam em cesáreas, como cordão umbilical em volta do pescoço e bebês na posição "errada", e mesmo assim todos eles tinham nascido na cama dela e estavam vivos.

O médico dizia o que todos eles dizem, que claro que o parto normal é melhor, e que vai ser normal se tiver tudo bem ou se não passar de 40 semanas, essas coisas. Eu não tinha ideia de como as coisas realmente funcionam e segui achando que era isso mesmo. Então fiz alguns exercícios de fisioterapia e ioga no fim da gravidez e aguardei. No bendito dia a coisa evoluia razoavelmente bem até que eu tive que ir pro hospital. Aí tudo parou. Me agoniei com o cheiro de éter, as paredes verdes (os cobertores verdes, as portas do armário verdes, o sofá de acompanhante verde), com ter que ficar deitada o tempo inteiro e em pouco tempo ouvi as palavras que normalmente precedem as cesáreas, mas que nunca seriam discutidas ali naquele ponto: "vamos cortar senão o bebê vai entrar em sofrimento".

Mesmo que eu tivesse todo o conhecimento que eu tenho hoje, jamais nessa vida discutiria com alguém que me dissesse isso no meio de um parto, então fui pra faca e senti a maior dor que já tinha sentido até então. Foi na hora em que ela saiu da minha barriga e que eu fiquei ouvindo ela chorar do outro lado da sala de cirurgia enquanto faziam aqueles testes e limpavam ela e eu ficava amarrada na cama sem poder nem ver a minha filha. Por muitos anos eu achei que era uma dor que toda mãe sentia quando não era mais um só com seu filho. Uma "dor da separação", e que era normal. E foi por causa dessa dor inesquecível que eu fui atrás de um parto humanizado na próxima chance que eu tive. Eu não sabia que ia sentir de novo essa dor elevada a enésima potência quando tirassem o meu filho de mim direto pra uma cirurgia cardíaca, mas eu precisava tentar.

Então quando eu tava escolhendo como seria o parto do Matias analisei tudo o que me aconteceu naquele dia em que a Júlia nasceu e achei que, como a evolução do parto foi totalmente bloqueada quando eu cheguei no ambiente hospitalar, eu tinha que ficar em casa. E aí eu descobri que eu confiava totalmente nas pessoas que eu tinha escolhido pra acompanhar esse processo, e sabia que elas não me deixariam correr nenhum risco desnecessário, que eu morava num lugar de super fácil acesso a um hospital e que a única coisa que me assustava num parto domiciliar era o que as outras pessoas iam pensar ou dizer.

Nessa situação, sem saber da cardiopatia, eu não sei que desculpa existiria pra o Matias não nascer de parto normal, porque não aconteceu nada, a mínima coisa fora do normal. Eu perdi o tampão na sexta à noite, tive algumas cólicas durante a madrugada, que se diluíram durante o dia do sábado mas apertaram na madrugada. Domingo de manhã resolvemos fazer acupuntura pra diminuir um pouco o ritmo, já que eu estaria muito cansada caso precisasse passar mais uma noite em claro, ou apressar, se o Matias assim quisesse. E ele quis. A acupuntura foi depois do almoço e sete da noite ele nasceu. Foi muito rápido. Muito tranquilo (sim, dói, dói pra caralho e eu quis morrer, mas estarei mentindo se disser que tenho alguma lembrança dessa dor, enquanto por outro lado lembro de todas as sensações da expulsão de do nascimento propriamente dito. Além disso tinha estudado muito e sabia exatamente o que cada dor significava, então quando ficou insuportável, eu sabia que tava no fim).

Quando ele nasceu, tava tudo bem. Eu ainda não entendo nada de cardiologia e durante todo esse processo assumi o papel que era meu, de mãe sofredora, então não sei explicar essas coisas direito. O que eu entendi é que as ligações coração-pulmão são diferentes quando a pessoinha tá na barriga, e vão mudando pra o que é pra ser depois que ela nasce. Por isso as medições que foram feitas quando ele nasceu (e sim, todos os exames necessários foram feitos, tinha uma pediatra especialista em reanimação acompanhando o nascimento) deram resultados normais. Ele chorou, mamou, fez cocô. As coisas começaram a acontecer algumas horas depois que ele nasceu e é nesse ponto que eu quero chegar. É por isso que eu acho que o parto domiciliar é possível desde que se tenha uma equipe competente acompanhando. Algumas horas depois do parto o Matias começou a ficar mal e algumas horas depois do parto a pediatra e a parteira estavam lá em casa de novo, fazendo o acompanhamento de rotina e encaminharam o Matias para o hospital e tudo o que teria sido feito se ele tivesse nascido no hospital foi feito do mesmo jeito, provavelmente ao mesmo tempo.

O que eu quero dizer no final das contas é que, hoje, eu acredito no direito de escolha. Do mesmo jeito que, apesar de não ser o que eu faria, acho que a mulher tem todo o direito de não querer amamentar pros peitos não caírem ou fazer escova antes da cesárea pra sair bem na foto, se isso for o que ela quer. E acho que é preciso dizer, mesmo nos casos mais adversos, como o meu, que parto domiciliar não é bruxaria, não é doidice, não é coisa de hippie. Tem gente muito séria fazendo isso, gente que sabe o que tá fazendo mas não deixa de te respeitar por isso.

Um beijo pra todos os envolvidos.

3 comentários:

  1. Sil, estou feliz em ler esse relato.
    A escolha é isso aí mesmo, um direito que implica em responsabilidades, em assumir o que escolhemos com o ônus e bônus (não tem nada no mundo que tenha só a parte boa, sem as dificuldades). Eu não faria essa escolha que você fez (apenas do local do parto), mas acho importante que exista essa opção para quem deseja optar, desde que, como você mesma falou, esteja devidamente informado, preparado e estruturado (o que será para qualquer escolha nessa vida). Beijo!

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  2. Amiga, eu só vim aqui comentar porque esse assunto e o que vem com ele, sobre escolhas, sobre assumir essas escolhas e entendê-las, é hoje pauta fluorescente na minha vida. A gente se orgulha, se arrepende, paga a língua, coloca uma condecoração e segue, fazendo escolhas o tempo todo sem parar. Através do medo ou através da fé, que são os dois caminhos que temos a disposição. Eu não vou nem entrar no assunto do nascimento de Matias, que foi lindo, de tudo o que veio depois, que foi horrível,do orgulho que sinto de tu sendo a mãe que tu é, enfim, tu sabe, já te disse algumas vezes. Mas quero deixar registrado aqui o quanto fico feliz por você ter escrito esse texto. Mais uma página dessa história contada e partilhada. E tu escreve tão bem...É tão massa ler teus escritos...

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  3. oi silvia!!!!

    MARAVILHOSO o seu relato!!!!! sou enfermeira obstetra tb (além de "encadernadora" rs), e tb escolhi ter um parto normal do lucas, meu cardiopata, Q TB NAO FOI DIAGNOSTICADO DURANTE A GRAVIDEZ, exatamente pelo mesmo motivo do seu:TUDO ESTAVA BEM... e sinceramente, agradeço a Deus por não ter sabido antes do nascimento, pois esse conhecimento me tiraria a oportunidade de passar por um trabalho de parto natural (apesar dele não ter finalizado como eu gostaria, mas q foi o melhor pro lucas) e me levaria diretamente para uma cesárea... E como vc escreveu, temos o direito de escolher como parir nossos filhos! Depois do diagnóstico da tetralogia, com 3h de vida (apesar q no momento do nascimento ele já apresentou algumas "inconformidades" neonatais) fui muito criticada por minha familia por ter ficado (quase) 3 dias em casa com contrações e só ter ido para o hospital momentos antes dele nascer... MAS FOI MINHA ESCOLHA!... não iria mudar nada os acontecimentos pós nascimento se a cardiopatia tivesse sido diagnosticada durante a gravidez! e apesar das críticas, faria tudo de novo! (so não fatia o q me conformou no pós nascimento, como por ex, ter saído de alta sem ele, apenas pq queriam q ele ganhasse mais peso, e no fim acabou saindo com menos peso de qdo estava no dia q tive alta, tudo por causa de uma profissional ignorante, q tinha hora pra terminar seus afazeres no hospital e prolongou um exame, pq o coitado do meu filhos não cooperou pq estava com fome e chorava muito, o q o levou q gastar mais energia e daí perder peso! :( ) enfim, acredito, SEMPRE, q a mulher - e qualquer pessoa - TEM O DIREITO DE ESCOLHER SOBRE SUA VIDA, afinal é o q nos distingue de outros animais: O LIVRE ARBÍTRIO! Bjs pra vc e seu pequeno guerreiro!

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